Shinichi Suzuki: O Método da Língua Materna e a Educação do Talento
Autora: Renata Jordão |
Publicado originalmente na revista Educação Musical, nº 3 de Agosto/Setembro de 2019 Reproduzido com permissão da autora e do editor.
Assim como um grande compositor transcende o tempo através de sua obra, Dr. Shinichi Suzuki (1898 – 1998), violinista, educador, filósofo e humanitário, transformou o enfoque educacional em um eterno hino de amor às crianças e à humanidade, através de sua simplicidade e vivacidade, devoção e humildade, pureza, criatividade e profunda reverência à vida que pulsa em cada ser humano… Enfoque esse que ressoa até os dias de hoje, de forma eficaz e hodierna. Exemplo esse que inspira cada segundo desta importante missão como educador.
Onde o amor é profundo, muito pode ser alcançado.
Shinichi Suzuki (1898 – 1998)
Nascido em 1898, Suzuki iniciou seus estudos de violino no Japão, de forma autodidata, após o impacto de ouvir o violino pela primeira vez aos 17 anos, em uma gravação de Micha Elman – Ave Maria, de Schubert. Em seguida, viajou para a Alemanha, para aprofundar seus estudos na tão atraente cultura ocidental, absorvendo-a diretamente da fonte. Após o final da Segunda Guerra Mundial, já casado, ele retorna ao Japão e, ao se deparar com um cenário “pós-guerra” desolador e inóspito, sobretudo para as crianças japonesas, em sua maioria órfãs, resolve se dedicar inteiramente à criação e ao desenvolvimento de um método de educação musical cuja missão era ver renascer em todos, o amor e a alegria, bem como cultivar nas crianças um coração nobre e puro através de uma poderosa ferramenta: A Música!
A Língua Materna – desmistificando a crença do “talento”
Segundo Suzuki, “O homem cresce da forma como é educado. Ele pode se desenvolver a um alto nível de acordo com a forma como é criado. Toda criança pode ser educada mas nenhuma nasce com a educação. Ter ciência deste fato será a base para a compreensão da natureza do ser humano.”
Com isso, em suas observações, Dr. Suzuki constatou que crianças ainda em idade precoce já conseguiam dominar muito bem seu idioma materno, graças à eficácia do método aplicado pelos pais! Mas em que consiste esse método? Quais seus aspectos essenciais?
Suzuki e as crianças
Crianças são exemplos de vida na sua forma mais pura e verdadeira, porque elas realmente buscam viver em pureza, amor e alegria.
Shinichi Suzuki (1898 – 1998)
Da mesma forma que os pais acreditam no potencial de seus filhos para falar, a essência da Filosofia Suzuki consiste na crença de que toda criança é capaz de aprender e desenvolver qualquer habilidade, ainda que complexa, atingindo nível altíssimo de maestria, já que possui potencial ilimitado para isso. Com base nesse aspecto, Dr. Suzuki desenvolveu seu método, procurando seguir todos os passos utilizados nessa abordagem e descobrindo a correlação direta entre o aprendizado do idioma materno e o aprendizado da linguagem musical, ambos absorvidos de maneira muito similar. Posteriormente, o Professor Edwin Gordon (1927-2015), autor e criador da MLT, “Music Learning Theory”, afirma o mesmo e finalmente reforça a descoberta do Dr. Suzuki de que o talento não é inato, mas sim um conjunto de habilidades em potencial, a serem estimuladas e desenvolvidas, sequencialmente, respeitando a construção dentro das prioridades estabelecidas de forma natural, passo a passo e no tempo de aprendizagem e crescimento individual de cada aluno.
Sendo assim, a Filosofia Suzuki passa a ser não somente o primeiro importante pilar que fundamenta o método mas principalmente o grande diferencial dentro desse vasto universo de educação musical. É o único método conhecido que apresenta como base uma Filosofia de Ensino e de Vida, a qual é profunda, eficaz e totalmente involucrada em cada um de seus aspectos técnicos e práticos, que, por sinal, são muito bem estruturados, ou mesmo geniais! Dessa forma, é importante ressaltar que o Método Suzuki, em sua íntegra, não é um compilado de canções folclóricas organizadas em dificuldades progressivas. Ele é, em sua primeira instância, a filosofia que trabalha, através da música, a nobreza e a pureza de caráter de crianças e indivíduos, fazendo aflorar o melhor que existe no âmago de cada ser humano e, ao mesmo tempo, desenvolvendo habilidades e qualidades que são estimuladas e desenvolvidas a cada conquista realizada com amor, perseverança e alegria. Habilidades estas que serão ferramentas para a música e para a vida! Em última análise, não existe Suzuki sem sua Filosofia.
Filosofia:
1 – Toda criança é capaz: Howard Gardner, professor da Universidade de Harvard, em sua “Teoria das Inteligências Múltiplas”, conclui que cada indivíduo possui todas as inteligências em potencial (8 inteligências no total, sendo a musical uma delas), umas mais despertas que outras, porém todas presentes. Essa informação nos liberta de uma impressão erroneamente determinista sobre “talentos”, já que toda criança possui a capacidade de desenvolver qualquer habilidade que se queira, se estimulada correta e construtivamente . Ao criar o método, o Doutor Suzuki intuitivamente sabia dessa verdade e, em situações adversas, trabalhou da mesma forma com todos os perfis de alunos, acreditando em suas habilidades e obtendo resultados extraordinários.
2 – As habilidades desenvolvem-se cedo! Quanto antes, melhor, já que o cérebro, desde seus primeiros meses de vida, tem capacidade infinita de absorção! Desse modo, além de todos os benefícios que vão desde o desenvolvimento motor até o sócio-psicológico (comprovados cientificamente), a música torna-se parte natural da vida da criança e é incorporada como uma forma de expressão prazerosa, divertida e sobretudo fundamental deste crescimento. É necessário somente usar linguagem e ferramentas adequadas para cada momento de vida de uma criança.
3 – O ambiente nutre o crescimento: O ambiente é, em primeiro lugar, cada segundo da vida da família, incluindo atitudes, fala, conduta e boa música. Pais devem ser bons exemplos sempre, pois as crianças observam e absorvem tudo, criando referências e crenças. É importante fazer do tempo dos pais um momento de amor e segurança no qual a criança pode aprender com paz e sem medo de errar ou sentir ansiedade/expectativa por parte deles. Além disso, a motivação e o reconhecimento do esforço alimentam o desejo de aprender com entusiasmo.
A visão: Pais e professores têm a certeza de que a criança vai se desenvolver, não importa o tempo nem a complexidade do desafio, assim como uma mãe tem certeza de que seu filho vai falar, não importando a dificuldade do balbucio.
O desenvolvimento das habilidades: Depende do envolvimento dos pais, comprometidos em fornecer um ambiente musical que favoreça a criança ao aprendizado, alimente e estimule o seu desejo por aprender mais.
O reforço positivo e, acima de tudo, verdadeiro: Devemos reconhecer cada avanço com sinceridade e buscar melhorar o que ainda é necessário trabalhar, nunca elogiar falsamente o que ainda não está bom, pois as crianças reconhecem a mentira e perdem a confiança em seu professor. Também é importante ensinar os alunos a reconhecerem, com o mesmo entusiasmo e alegria, o esforço e o avanço dos demais. O contato com alunos mais avançados passa a ser o exemplo de onde eles podem chegar. Gera o parâmetro da excelência e não causa frustração, competição ou inveja. Isso tudo deve ser ensinado e cultivado pelo professor e pelos pais.
Qualquer criança é capaz de demonstrar habilidades superiores se forem usados métodos corretos de práticas e treinamento.
Shinichi Suzuki (1898 – 1998)
O Método da Educação do talento – o segredo da prática!
A palavra “educação”, kyoiku – em japonês -, surge da palavra kanji Kyo (ensinar) e da palavra Iku (cultivar). Ensinar é como plantar uma semente com todo cuidado. Cultivá-la com amor e responsabilidade para que o conhecimento (semente) se torne uma habilidade inerente é finalmente o ato de educar em sua totalidade! Para isso, é necessário um trabalho constante e paciente, sem pressa nem expectativas, mas também sem descanso! Nutrir o aluno com amor, conhecimento e consciência da importância do passo a passo, essa é uma das bases da Educação do talento.
E como tornar possível e bem sucedido esse processo? Em resumo, seria exatamente como se aprende a língua materna: um processo natural dentro do ambiente, onde cada habilidade é desenvolvida em camadas e acrescentada à anterior, sem descartar nada aprendido anteriormente.
Crianças antes de falar
Antes de falar, a criança escuta e observa e começa a reconhecer padrões e significados. Em seguida, ela imita, tentando reproduzir os sons que escuta embora não tenha resultados perfeitos. Na sequência, vêm os elogios e as repetições, momento em que a criança se sente motivada pelos elogios dos pais e, então, repete os sons. Depois disso, é a vez da maestria, já que, enquanto balbucia, os pais não corrigem o pequeno, pois sabem que, por meio da repetição, ele chegará à pronúncia correta. Neste momento, eles somente fornecem o modelo correto, emitindo sons de palavras como elas são ditas normalmente. A criança escuta e segue no processo de aprendizagem. Por último, está a leitura, visto que não se espera que o infante leia imediatamente. É só a partir do momento em que a criança domina mais de 100 palavras e é capaz de formar frases e compreender histórias, que ela estará apta a entender os símbolos associados à linguagem sonora que escuta. Nesse momento, começamos a guiar a criança introduzindo o material de leitura simples para um total entendimento. Segue-se, portanto, o processo de forma gradual.
Habilidade musical não é um talento nato e sim uma habilidade em potencial. Qualquer criança devidamente treinada pode desenvolver a habilidade musical, da mesma forma que a criança desenvolve habilidade para falar sua língua materna.
Shinichi Suzuki (1898 – 1998)
Metodologia: visão espelhada da língua materna
Escutar: Por que é importante ouvir a música antes de tocá-la? Talvez esse seja o passo mais importante de todo o processo, já que, sem ele, nada que segue poderia ser construído.
Segundo Edwin Gordon (Music Learning Theory), o processo de se criar qualquer som está diretamente relacionado ao desenvolvimento da escuta. Da mesma maneira que uma criança aumenta seu vocabulário de linguagem, ouvindo um maior número de palavras, inclusive entonação, sotaques e variações da língua, assim também ocorre na música: quanto mais se escuta e com maior variedade, mais enriquecedora é a experiência e mais ampla será a gama de sons e vocabulário musical, bem como o senso crítico de qualidade sonora. (Cores, matizes, afinação, expressão, fraseado, dinâmica.).
Ouvir e internalizar a música que vai ser tocada posteriormente é essencial. A criança interioriza a música e passa a conhecê-la com profundidade, o que é uma excelente ferramenta de aprendizado. Esse processo foi nomeado por E. Gordon como “Audiação”.
Audiação é a capacidade de ouvir a música internamente e com entendimento. Audiar é escutar, acompanhar e compreender a música que não está presente fisicamente. Pode-se dizer que Audiação está para a música, assim como o pensamento está para a linguagem. Pode-se cantar internamente a melodia do início ao fim.
Para finalizar esse tópico, é importante que os alunos criem referência de música ao vivo, concertos e recitais de músicos profissionais, completando e enriquecendo essa experiência.
O hábito da ação, acredito ser esse o hábito mais importante a ser adquirido.
Shinichi Suzuki (1898 – 1998)
Envolvimento dos pais
O envolvimento dos pais é fundamental, essencial e importantíssimo. Eles são, ao mesmo tempo, observadores, secretários, estudantes, professores assistentes, criadores do ambiente (como acontece com a língua materna), incentivadores e grandes apoiadores. Para desempenhar tais funções, devem se comprometer a ensinar as crianças e passar tempo com elas, sendo que a atitude deve demonstrar o interesse e o empenho em ajudar e acompanhar o passo a passo com alegria. Devem ter a consciência de que são os modelos em casa; portanto, se gostam da música, as crianças também gostarão. Precisam estar presentes em todas as aulas e tomar notas, fotografar ou filmar. São os professores em casa durante os outros seis dias da semana e, por isso, é essencial que compreendam como praticar em casa. Devem demonstrar prazer em repetir e praticar, usando a criatividade.
Comunicação: com o professor, esta deve ser fluida e clara (problemas e ideias para soluções). Durante a aula semanal, os pais devem abstrair-se e somente observar para que a aula tenha somente um foco: o professor.
Prática: Diária! Segundo Suzuki, “deve-se praticar somente nos dias em que se come!”. É necessário ter consistência, ter uma agenda ou um tempo definido a cada dia e ser constante, para que a prática se torne um hábito. É fundamental ter DISCIPLINA e PERSEVERAR quando houver algo difícil. São dados pequenos passos e um passo de cada vez. Os pais não devem avançar antes do professor. Não devem ensinar música nova se o professor não terminou de ensinar os pontos principais de uma música antiga.
Ouvir e respeitar a criança: caso ela não queira praticar, é importante procurar saber o porquê e adaptar-se. Isso não significa deixar de praticar, mas sim chegar a um acordo sobre como, quando e o quê praticar. Caso a criança esteja doente, ela pode ouvir o CD. É importante ser criativo na resolução de problemas, além de procurar a ajuda do Professor.
Repetição e Revisão
Habilidade = Conhecimento x 10.000 repetições
Ter o conhecimento de como se toca uma peça ou uma passagem dentro da música não significa dominá-la. Para que o conhecimento se torne uma habilidade com alto nível de maestria, é preciso repeti-lo infinitas vezes até que o conhecimento seja internalizado em todos os níveis de memória, desde o auditivo até o mental, o muscular etc. Quando uma música começa a ter um bom resultado, é neste ponto que ela deve ser mantida, repetida, revisada e refinada, a ponto de atingir o mais alto nível de execução, memória e domínio.
As músicas antigas servem para criar novas habilidades, portanto é preciso uma boa atitude (de pais e alunos) para realizar a revisão sempre, descobrindo novas camadas de uma mesma peça. É como percorrer o mesmo caminho com um olhar mais profundo sobre a mesma paisagem, atentando-se para novas cores, pássaros e flores.
A revisão deve ser feita com um objetivo, um enfoque específico, um significado e a visão do que queremos atingir técnica ou musicalmente.
A repetição deve acontecer muitas vezes, tendo o cuidado de fazê-la corretamente e com perseverança, relembrando que errar também faz parte do processo de aprendizado e é parte importante dele.
É necessário ser criativo nas revisões, usando recursos de jogos e desafios, repetindo o mesmo de maneiras diferentes.
É igualmente importante verificar o que foi feito na aula anterior.
Aulas em Grupo: “Crianças aprendem de outras crianças”, além de experimentar cooperação em lugar de competição. Todos ficam felizes quando o grupo inteiro consegue realizar bem uma peça.
A aula em grupo é fundamental, pois, na aula individual, a criança aprende, ao passo que, no grupo, aplica-se e reforça o que foi aprendido.
As aulas são divertidas e nelas se aprende com alegria. Além de compartilhar dificuldades, reconhecer e procurar soluções juntas, as crianças aprendem também assistindo aos alunos mais avançados, tendo-os como modelo, estímulo e inspiração. Elas ainda desenvolvem fortalezas de caráter como humildade, disciplina, concentração; o espírito de liderança, o como seguir um líder e tocar em grupo, dentre outros.
Sucesso gera sucesso: Ao trabalhar cada passo e chegar ao resultado, o aluno se estimula a melhorar cada vez mais e buscar novos desafios a serem vencidos. Quanto mais os esforços forem reconhecidos e seus avanços encorajados, mais o desejo de melhorar estará enraizado.
VOCÊ SABIA?
Além do violino, existem formações Suzuki para Contrabaixo, Metais, Cello, Flauta Doce, Flauta transversa, Violão, Harpa, Órgão, Piano, Viola, Voz e Suzuki Early Childhood Education – SECE (Educação Suzuki para a Primeira Infância). Para mais informações sobre o Método, como se tornar um professor Suzuki ou como encontrar um professor Suzuki na sua região, acesse: www.suzukiassociation.org
Aula de um enfoque apenas: “O passo a passo”
É muito importante que o professor comece a aula com a revisão para poder checar pontos importantes a serem aprimorados. Uma vez detectado, é necessário que o professor mantenha seu enfoque neste ponto para que a técnica seja estudada de maneira sólida e concisa. É fundamental que o aluno mantenha, durante uma semana, a concentração nesse aspecto específico. São os desafios desmembrados em pequenos passos.
Aprender de ouvido e Memória: Notas musicais a serem descobertas são desafios a serem treinados em casa e com a escuta do CD. O professor normalmente não direciona o tempo de aula para ensinar nota. Esse é o trabalho do aluno em casa. Dessa maneira, desenvolve-se, desde o princípio, o reconhecimento de relações intervalares e uma grande autonomia em aprender de ouvido e até modular naturalmente. Alunos são encorajados a tocar de memória que, desenvolvida passo a passo, transforma-se em incrível habilidade, desde pequenas peças até as mais avançadas!
Leitura: Assim como na língua materna, a leitura é posterior à fala. Normalmente é introduzida a partir do momento em que o aluno tem entendimento e domínio de prioridades como postura, sonoridade, musicalidade e “vocabulário” mínimo para que se possa aprender os símbolos correspondentes.
O Triângulo Suzuki
Finalmente, o “Triângulo Suzuki” nos guia e nos mostra a equidade de importância entre cada um dos seus pontos.
Através da visão desse diagrama criado por Doutor Suzuki, podemos ter uma ideia prática e concisa de todo o processo de construção do ambiente positivo, essencial para que o aprendizado aconteça de maneira sólida. Nota-se claramente que esse incrível trabalho de equipe transforma-se em uma poderosa engrenagem cujo motor funciona alimentado sobretudo pelo Amor e através dele percorre distâncias sem medidas e paisagens de inigualável beleza, nesta jornada fascinante que é “Educar e ser Educado com Amor.”
Acredito e constato que…
…“onde o amor é profundo, tudo pode ser alcançado!”
Bibliografia
Educação é amor, Shinichi Suzuki
Ability Developed from Age Zero, Shinichi Suzuki
They are rarely too Young… And never too old “to Twinkle!”, Kay Colier Slone
Helping parents practice, de Edmund Sprunger
Teaching from the Balance Point, Edward Kreitman
Teaching with an open heart, Edward Kreitman
To learn with love, Willian & Constance
Is Suzuki working in America?, Ray Landers
Renata Jordão é formada em Regência de Orquestra pela UFRJ, e em violino pela Academia de Música de Wemmel- Bélgica. Professora Suzuki de violino com formação em cursos creditados pela SAA, nos Estados Unidos e América Latina. Trabalha como professora de violino, musicalização infantil e teoria musical.