Nem Certo, Nem Errado, Muito pelo Contrário. . .
Um Depoimento Fredi Gerling
Autor: Prof Dr. Fredi Gerling
Contato: fredi.gerling@ufrgs.br
Publicação original do V Simpósio de Cognição e Artes Musicais Internacional, 2009, Goiânia. Anais do V SINCAM 2009. Goiânia, GO: Escola de Música e Artes Cênicas da UFG, 2009. v. 1. p. 45-50. Republicado com permissão do Autor.
Durante os mais de quarenta anos de atividade pedagógica ininterruptas em várias regiões do Brasil e dos Estados Unidos da América, sempre me chamou atenção a diferença de conhecimento musical básico dos alunos. Constatei que o ponto em comum a todos é a aprendizagem das peças através da audição de gravações e vídeos. Se estes alunos tem uma capacidade de copiar as gravações que ouvem porque continuamos a ouvir execuções que são razoavelmente afinadas e fluentes mas, que contém imprecisões rítmicas. O que proponho é que ao partir do repertório preferido destes alunos, seja hip-hop, pagode, samba ou Beethoven nós devemos trabalhar as ferramentas do fazer musical a partir da compreensão e aplicação dos valores atribuídos a estes parâmetros dentro de cada estilo e cultura de manifestação musical. Assim podemos conciliar as opções estéticas dos alunos que cada vez se distanciam mais da música dita erudita e na qual o repertório dos instrumentos, especialmente os de corda, esta fundamentado com o ensino de valores musicais presentes em todas as manifestações musicas.
Não há quem aprenda alguma coisa simplesmente por tê-la ouvido, e quem não se esforça sozinho em certas coisas acaba por conhecê-las apenas de modo superficial e pela metade.
Recentemente, tive o prazer de atuar como professor visitante em um curso de férias em uma cidade no Brasil Central. Em meio aos inúmeros alunos presentes, um grupo se destacava. Vindos de um projeto social em outra capital, a atitude destes alunos era exemplar. Um comprometimento com o projeto de fazer música e comunicar a alegria de fazê-la à audiência. Tive o prazer de ouvi-los em várias situações, como grupo, em uma apresentação emocionante e também individualmente em aulas.
O que me leva a tecer estas considerações foi a disparidade que pude observar entre o nível da apresentação coletiva–que só merecia elogios–e o grande talento e facilidade aliados a muito pouco conhecimento musical e instrumental constatado na execução de cada um dos indivíduos.
Durante os mais de quarenta anos de atividade pedagógica ininterruptas em várias regiões do Brasil e dos Estados Unidos da América, sempre me chamou atenção a diferença de conhecimento musical básico dos alunos. Posso testemunhar que estas diferenças são regionais e diretamente ligadas a qualidade do ensino de música nas escolas de cada região. O episódio relatado acima, portanto, não foi o primeiro a chamar minha atenção, mas foi o ponto de partida para reflexões e observações mais detalhadas com o intuito de entender melhor esta disparidade entre talento individual, conhecimento musical e nível de execução instrumental.
Desde então, passei a observar com mais atenção, quais os parâmetros musicais eram mais adequadamente respeitados por todos os alunos com que trabalho e que apresentam um perfil semelhante. Constatei que, a habilidade auditiva destes alunos é indiscutível. Sua aptidão na reprodução das alturas pode ser comprovada através de uma afinação que não é apenas aceitável mas em alguns casos é até excepcional para o nível de conhecimento do instrumento. A coordenação motora adequada ao aprendizado do instrumento fica evidenciada pela facilidade de execução de passagens rápidas, apesar da pouca instrução e ausência de padrões motores organizados.
Ao entrevistá-los, constatei que o ponto em comum a todos é a aprendizagem das peças através da audição de gravações e vídeos. O acesso à internet tem possibilitado que os alunos hoje, cada vez mais facilmente, tenham livre acesso e exposição a instrumentistas modelos. Se há algum tempo atrás, os alunos apenas ouviam gravações, hoje com o You Tube e a troca de arquivos eletrônicos entre amigos, pode-se ter uma excelente execução de quase qualquer obra ou estudo, bem como aulas sobre os mais variados tópicos disponíveis a qualquer hora.
A questão com que nos deparamos é: Se estes alunos tem uma capacidade de copiar as gravações que ouvem porque continuamos a ouvir execuções que são razoavelmente afinadas e fluentes mas, que contém imprecisões rítmicas, falhas de articulação e sonoridade inaceitável; e por que não ouvimos intenções de fraseado, dinâmica e identificação com o conteúdo expressivo das obras?
A partir desta pergunta procurei conversar com os alunos para saber o que mais os impressionava ao ouvirem as gravações ou execuções de outros instrumentistas. Não foi uma surpresa ouvir que a velocidade das execuções era o que eles mais almejavam. Então o paradigma de uma boa execução para estes alunos é: Quanto mais rápido, melhor. Podemos notar também que a hierarquia dos intérpretes favoritos tem a ver também com estes critérios: “a gravação do capricho no 5 de Paganini com Kavacos dura menos de dois minutos então ele é o melhor violinista”.
Ao constatar que este comportamento dos alunos é um padrão recorrente em todos os locais em que atuo como professor e aparentemente independe do contexto social, considerei oportuno escrever as presentes reflexões e repartir minha abordagem ao problema como ponto de partida para o que vejo como uma área rica para a pesquisa no ensino da música neste momento.
Através do relato acima podemos ver que os alunos demonstram uma facilidade de execução ao emular as qualidades que apreciam nas gravações que usam como modelo. Em outras palavras, estes alunos estão dispostos a investir seu tempo e esforço para conseguir o objetivo que valorizam acima de todos os outros. Um comportamento em nada diferente daquele que os leva a economizar dinheiro para trocar de celular ou comprar um boné de grife.
A máquina de publicidade que transforma os bens de consumo em objeto de desejo tem se mostrado eficiente em promover estes valores de tal forma que o comportamento do consumidor é moldado de maneira que tem modificado valores sócio-culturais através do planeta. Mas, isto já é assunto para outro trabalho. O que pretendo aqui, é estabelecer um paralelo entre o processo de valorização dos bens de consumo e com o que chamo de valorização dos paradigmas musicais. Tenho a esperança que com a devida compreensão deste processo possamos nos tornar igualmente eficientes na promoção de valores musicais.
As transformações culturais do final do século XX, por sua abrangência em todas as manifestações intelectuais, artísticas e socioeconômicas do ser humano, serão objeto de estudo por muito tempo. Quero me deter, muito brevemente, no impacto que a conscientização de que vivemos em um planeta multi-cultural teve para a música e conseqüentemente para a educação musical.
A interlocução de compositores e intérpretes com as mais diversas formas de fazer musical, derrubou o mito da música como linguagem universal ao mesmo tempo que mostrou que a música esta presente em todas as culturas independente de seu desenvolvimento tecnológico. Abraçamos a diversidade dos múltiplos fazeres musicais e ganhamos um universo sonoro que só é limitado se nos deixamos vencer por preconceitos. Estamos ainda lutando contra padrões eurocêntricos é verdade, mas indiscutivelmente demos um grande passo para o reconhecimento de que as artes devem não só respeitar mas originar-se da identidade cultural de seu povo. Isto significa que no âmbito da educação há que se respeitar as origens culturais dos alunos e distinguir entre o ensino das ferramentas do fazer musical e o dirigismo ideológico cultural que por anos norteou o currículo de nossos conservatórios.
Se analisarmos as músicas de culturas as mais diferenciadas constataremos que todas terão como fator comum os parâmetros da música. A organização de alturas e durações, por exemplo, sempre estará presente, mas a forma e o valor estético atribuído a estes parâmetros terá inúmeras variações que criam as características inconfundíveis de cada cultura.
Partindo deste pressuposto, se quisermos trabalhar as ferramentas do fazer musical temos que partir da compreensão e aplicação dos valores atribuídos a estes parâmetros dentro de cada estilo e cultura de manifestação musical.
Na prática pedagógica isto se traduz em ações que transcendem o apontar erros na execução do aluno, levando a explicação do porque que em um determinado gênero de música certos parâmetros são fundamentais para sua compreensão.
A questão que se apresenta para a maioria dos professores de instrumento, na maioria dos casos com formação dentro dos moldes europeus, é como conciliar as opções estéticas dos alunos que cada vez se distanciam mais da música dita erudita e na qual o repertório dos instrumentos, especialmente os de corda, esta fundamentado.
Se de um lado há que se respeitar as preferências estéticas dos alunos na escolha de repertório e viabilizar a realização de seus projetos expressivos, também temos a obrigação de manter as portas abertas para possíveis mudanças de interesses e prepará-los para atuar em um cenário musical cada vez mais variado e competitivo. Temos que orientar seu trabalho levando em conta suas aspirações de longo prazo considerando sua bagagem musical prévia para um diagnóstico das possíveis deficiências em relação a seus objetivos. Temos que levar em conta se a linguagem da obra que o aluno se propõe a executar, faz parte da sua experiência estética antecedente ou se apresenta um novo mundo musical, ou ainda, quais os valores musicais desta linguagem são identificáveis em sua experiência musical precedente.
Pode parecer que estou apenas repetindo uma proposta que já esta bastante estabelecida: partir do repertório conhecido do aluno para construir seu conhecimento. No entanto, o que estou sugerindo é um pouco mais amplo e abrangente.
Como dito acima, atualmente dispomos de um acesso muito fácil a bons exemplos de execução de quase qualquer obra. Esta abundância de recursos, no entanto, não diminui a dificuldade de assimilação dos valores estéticos de obras produzidas em outras culturas e há mais de um século. Se os valores musicais que nortearam os compositores destas obras não forem assimilados e se os valores estéticos não forem contextualizadas nas obras em estudo, o aluno permanecerá tentando reproduzir um modelo sem a devida compreensão estilística. Acredito que simplesmente aceitar que alunos toquem o repertório que mais gostam deixando que desrespeitem valores fundamentais para a compreensão destas obras é o equivalente deixá-los acreditar que 2+2=5. Por isto rejeito vigorosamente a postura condescendente daqueles que dizem que alunos brasileiros não podem entender a música de compositores europeus por não terem uma condição socioeconômica privilegiada. O que proponho é que ao partir do repertório preferido destes alunos, seja hip-hop, pagode, samba ou Beethoven nós devemos perguntar: Por que tempo é fundamental na execução de Beethoven? O que faz o hip-hop ser bom ou ruim? Quais são as qualidades de um bom intérprete de pagode? Por que quem não gosta de um bom samba “ou é ruim da cabeça ou doente do pé” ?
Felizmente, não aceitamos mais o preconceito de que Beethoven é um “grande mestre” e por isto sua obra é culturalmente superior, por outro lado não podemos ter a postura complacente de tocar sua obra de maneira relapsa só por que “estamos no Brasil”. Acredito que ao trabalharmos os valores que dão uma qualidade excepcional a qualquer gênero de música, nos livramos dos preconceitos de que determinados repertórios são “elitistas”. Beethoven mal tocado definitivamente não é elitista assim como samba sem “balanço” não apelará às massas.
No encontro relatado no início destas considerações, o aluno tocou o 1o movimento do concerto em lá menor BWV 1041 de Bach. Vamos por um momento considerar a distância que nos separa de Bach. A obra em questão foi composta há mais de duzentos anos, na Europa, para um instrumento diferente do que utilizamos hoje, e com uma função social completamente distinta. Isto sem falar nas diferenças socioeconômicas entre a sociedade alemã nos meados do século XIII e uma capital brasileira do século XXI. Isto implica que nenhum de nós tem uma vivência real desta música como temos por exemplo de uma escola de samba. O que temos, e muito bem documentado, é o conjunto das práticas interpretativas da música de Bach ao longo de mais de dois séculos que estabeleceram os valores para uma ponderação dos problemas com que nos deparamos na execução da música de Bach.
O maior problema na execução daquele aluno era a ausência de um pulso estável e das articulações e arcadas corretas que o impediam de projetar qualquer significado expressivo musical. Procurei abordar estes assuntos sem mencionar diretamente seus erros. Explorei paralelos com os valores da música popular, que ele conhecia, para explicar a necessidade de um pulso estável. Analogias com a linguagem foram muito úteis para estabelecer a importância da acentuação correta das sílabas e por extensão, das notas. Acredito que com este procedimento consegui que este aluno passasse a valorizar ”pulso” e “articulação” como valores musicais que ele deveria ouvir nas gravações e trabalhar para conquistar em sua própria execução. Após alguns exercícios práticos que incluíram os demais alunos presentes formando uma “bateria” a estabilidade rítmica da execução deste aluno foi significativa e sua compreensão das arcadas certamente melhorou. Sua maior recompensa foram os elogios dos colegas presentes que se entusiasmaram com a diferença.
Acredito que o estudo deste processo de assimilação de valores musicais pode auxiliar em muito a prática pedagógica pois ao colocarmos o foco na importância do valor do parâmetro não criticamos a opção estética. Assim sendo podemos trabalhar a importância de cantar ou tocar afinado, com correta pronuncia e articulação, e ouvindo uns aos outros, em qualquer repertório pois, afinação, articulação e estar junto são valores que podem se aplicar a vários gêneros musicais e em diversas manifestações culturais.
O que vai certamente variar em cada contexto cultural e cada gênero musical será o conceito do que é estar afinado; do que é boa articulação; qual o grau de variação de intensidade se caracteriza como boa dinâmica; quão uniforme tem que ser a execução para se ter bom conjunto e o valor expressivo de cada parâmetro dentro da obra musical.
Sobre o Autor:
Prof. Dr. Fredi Gerling é detentor do Master of Music, violino – New England Conservatory Boston Mass (1974), e Master of Music, pedagogia do violino “with honors” – New England Conservatory Boston Mass (1976), recebeu o grau de Doctor of Musical Arts – University of Iowa (2000). Atualmente é professor associado no Departamento de Música e no Programa de Pós Graduação em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul onde desenvolve intensa atividade pedagógica. Sua experiência abrange a Didática do Violino, principalmente nas seguintes áreas: execução musical, regência e música de câmara e educação musical. No ano de 2008 apresentou todas as sonatas de violino e piano de Beethoven em parceria com o pianista André Loss em várias instituições de nível superior no Brasil e apresentou-se em escolas nos Estados Unidos e no Canadá com destacados grupos camerísticos executando tanto obras do repertório europeu quanto brasileiro. Desde 2004 é o diretor artístico e pedagógico do Festival de Cordas Nathan Schwartzman promovido anualmente pela Associação Pró-Música de Uberlândia. No ano de 2012 atuou como professor visitante de violino e música de câmara na University of Wisconsin/Milwaukee nos Estados Unidos.